LII — sonho de L

André Coelho
4 min readJul 27, 2021

Flutuo nesta atmosfera como se fosse um espírito. Estou de regresso a Marte? A tempestade…não a vejo ainda, mas lá em baixo está a base junto à qual a tua nave se despenhou. P… eles tentaram salvar-vos. Lá em baixo, a base parece um bunker. Todas as proteções das janelas, fechadas, todas as antenas não essenciais, recolhidas. “Vamos lá busca-los!”, “Mas como? Acabámos de perder sinal!”, “A probabilidade de os localizar agora, só com a trajetória conhecida e sem sinal, é inferior a cinco porcento”. A sala de comando está o caos. “Mas temos de fazer alguma coisa!!”. Eles correm, olham para os ecrãs, olham para as caras assustadas uns dos outros. Vejo claramente o seu pânico, as faces contraídas e os olhos esbugalhados, enquanto esgravatam numa réstia de sanidade para conseguir tomar uma decisão sobre o que fazer. Apesar da tempestade, o seu vaivém está solidamente ancorado na plataforma, mas as baixas probabilidades calculadas pelo computador demovem-nos de lhe pegar. Não foi não querer, P… foi não optar pelo suicídio. Ainda assim, saíram. Vejo-os a sair da base, um a um, metidos nos fatos, e a mergulhar na tempestade de areia. Cada um só consegue ver os seus próprios pés, o capacete do colega da frente a um braço de distância, e pouco mais. A fúria das partículas e das descargas elétricas a preencherem tudo o resto. Seguem, arrastando-se sob a força impetuosa da tempestade, atrás do mini rover, ao longo do caminho exterior da base para o sítio onde era suposto o vosso vaivém aterrar. A luz não atravessa a densa massa de areia, e o percurso parece-lhes durar uma eternidade, enquanto ouvem a respiração irregular uns dos outros através dos intercomunicadores dos fatos. A ideia era esses quatro montarem localizadores na plataforma, manualmente, na esperança que vocês pudessem aproximar-se o suficiente para ver, a olho nu, a base de aterragem. Isto enquanto os restantes quatro se fechavam no bunker, rezando para que no final não fossem eles os únicos sobreviventes. De repente, o chão estremece, na sequência de um clarão. “Rápido! Andem mais rápido!” Mas o vento, a areia, os fatos e o medo não lhes permitem… movem-se, apenas para não serem arrastados pela tempestade, e porque o ímpeto de salvar os impele para a frente. Salvamento que, nos bastidores do seu subconsciente, se torna, a cada passo, mais improvável. Sabem perfeitamente que as tempestades de areia não causam tremores de terra, e que aquele clarão não tinha sido, definitivamente, uma descarga elétrica. No meio do silêncio ensurdecedor da tempestade, filtrado pelos fatos, um tentáculo desmoralizador ganha terreno, desenhando-se nas mentes do grupo o desfecho inevitável. Aproximam-se devagar do destroço, assim que este se torna visível. Assistem, estarrecidos, ao consumo da nave de dentro para fora, agora esventrada pela explosão, retorcida e fundida parte da sua estrutura. Aguardam, vertendo lágrimas de frustração e desespero, que o rover faça o reconhecimento inicial, à procura de indícios de explosões secundárias, ou subsequentes derrocadas. Com o Ok do autómato, entretanto ancorado para resistir às forças laterais, eles avançam para a constatação do óbvio: não há ninguém para salvar. A sala de comando, tombada lateralmente, segura apenas restos disformes e carbonizados de pessoas, outrora colegas seus na missão espacial a Marte. Sabem não poder ficar mais tempo a contemplar uma nave destruída, juntamente com os farrapos de uma tripulação para além de qualquer resgate. Além disso, não tinham trazido as ferramentas para uma análise forense e, no meio da tempestade, todo o esforço nesse sentido seria em vão. Naquele momento, e apesar disso, só mesmo o salvamento fazia sentido. “Vamos voltar”, foi só o possível dizer, ao qual nenhum dos restantes respondeu, pois pensavam o mesmo. A tempestade não abrandava, à qual se adicionava uma nuvem de desânimo e tristeza no seio do grupo. A dificuldade de chegar à base é, agora, ainda maior, morta que está a esperança de encontrar alguém vivo. Vejo-os a arrastarem-se uns aos outros, segurando a corda que deixaram ao longo do caminho. Sabem que terão de voltar ao local do desastre, mas só mais tarde, quando a luz do Sol banhar por completo aquela terra vermelha, expondo claramente todas as peças daquele destroço. Entram na base exatamente como saíram, mas no sentido inverso: um a um, e em último o primeiro a ter saído. De repente, estou dentro da base, a vê-los entrar. Parece que o som foi desligado, mas os que ficaram vêm em seu socorro, gritam, fazem perguntas, conectam-se com o desânimo dos colegas. Para eles, todos, a perspetiva é agora de quarentena forçada pela tempestade, sob o peso do colapso e da morte. Apesar de saberem que fizeram o que podiam, cada um deles experiencia uma sensação insidiosa de falhanço. Estou ali em espírito e sei que todos eles sentem o dever de ter salvo, a inconciliável obrigação de ter feito o impossível. E algo me diz que vocês teriam feito exatamente o mesmo. Eis a coisa mais estranha, P: eu estou aqui e sei que estou a sonhar isto. Sei que não estive lá e que isto é uma reconstrução da minha mente, tecida a partir de uma série de factos recolhidos em relatórios impessoais. Eu não sei, exatamente, como é que morreste, nem como é que te tentaram salvar…este é o sonho mais consciente que alguma vez tive. Estou viva, estou a dormir, mas nunca me senti tão próxima de ti deste o momento em que este planeta vermelho te engoliu. Neste momento estou em paz. Daqui a pouco acordo, e sei que o vazio que ainda existe em mim se vai fazer sentir no meu corpo. Há uma parte de mim que terá de morrer, para eu viver sem a opressão permanente da tua morte.

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André Coelho

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